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sábado, 4 de junho de 2022

O PENHASCO DAS VIOLETAS: O CONTO


Há muito tempo, em uma ensolarada tarde de primavera, Hime, a bela filha de um poderoso senhor feudal chamado Asano Zenbei, foi colher flores no penhasco Shimizu, conhecido como “Poço das Violetas”. Ao estender a fina mão, porém viu apontar dentre as flores, a cabeça negra de uma grande serpente da montanha, pronta para dar o bote. Apavorada, a menina soltou um grito de dor e caiu desfalecida.

Uma de suas acompanhantes, chamada Matsu, ouviu o grito da princesa e correu até ela. Encontrou-a sem sentidos, e ao seu lado, uma serpente toda enrodilhada. Prontamente, a ama jogou o seu cesto sobre a cobra, que sumiu dentre as folhagens. Logo, todas as criadas foram se aproximando e a rodearam, tentando reanima-la. Mas tudo em vão, a cada minuto Hime se tornava mais lívida e fraca. —Fiquem tranquilas minhas jovens. Ouviram uma voz masculina atrás de si. — Eu conheço um modo de ajudar a princesa, se não se importam.

Quando ergueram seus olhares, um suspiro de espanto correu entre as damas. A sua frente estava o mais belo jovem que seus olhos já haviam tido o prazer de avistar. Trajado todo de branco, como um “Onmyoji” (praticante da ciência natural e ocultismo inspirado na filosofia chinesa yin-yang). Ele sorria-lhes com uma confiança que tirou de todas as testas o sinal de preocupação.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

O CORVO

 O Corvo de Fialho de Almeida. (O País das Uvas)

Aos primeiros clarões da manhã, o casco do galeão tinha-se afundado inteiramente. Para qualquer lado que se olhava, o mar não tinha termo; o céu ia coberto duma bostela de nuvens cor de chumbo, mosqueada de fulvo, que se fora erguendo duma banda, erguendo, te descobrir sobre a linha do mar uma fímbria d’alva muito pálida, por onde a luz começou a esclarecer de manso o plano líquido. E esse plano amainava e começava a perder os vagalhões...

Sobre as águas se erguia à maneira de torre, um grande ilhéu bronco e tisnado. Era uma massa de fortins dentada toda em roda, por cima de cuja plataforma outras moles gigantes se aprumavam. E havia pórticos, recantos, pátios, levadiças: a ressaca bramia nos recôncavos da rocha babujenta; por cima as nuvens galopavam, embebendo os goelanos e os corvos marinhos do seu chorume glácido e mortal.

Mas que silêncio! A tormenta da noite esfalfara a seu turno os elementos, e do galeão perdido nada restava mais do que um cadáver de escravo, flutuando de bruços, pela água – tísicas as pernas, os ombros recaindo em bola sob o esforço dos deltóides que a agonia paralisara na sua derradeira contratura, e a cabeça tão baixa e metida a machadada certeira dum carrasco.

Entanto a madrugada tocava de lividezes frias a epiderme corrugosa das águas, à medida que as nuvens se erguiam do oriente, pondo na linha d’água uma grande boca de claridade. Essa boca escancarava para dentro duma noção de deserto e de infinito, sem uma vela, e toda ululante, desse soturno troar que vem do fundo do oceano, como a imprecação de todos os milhões de seres que ele afogou.

Crescia a luz, e as nuvens se iam, lentas e cansadas, para outro hemisfério talvez, descobrindo os mares. E os rochedos do ilhéu, se por um lado desciam na paisagem, do seu prestígio fantástico, nem por isso ficaram menos lúgubres, com as suas grandes arestas medievais, e as suas proporções de sepulcro e pedestal.

De roda, as águas batiam-lhe de través os flancos carcomidos, com uma raiva que parecia insistir na proporção da inutilidade do ataque. E ao largo, por todas as bandas, não se viam senão brilhar palhetas finas na orla das ondas, uma após outra, correndo, e resolvendo-se alfim numa babugem de espuma efervescente.

Mau grado o aspecto pacífico, aquela imensidade era sinistra: tintas de cólera passavam às vezes, como maus pensamentos, por baixo da epiderme glauca do oceano; via-se então escancarar covas na água, brotar um braço da espádua duma onda; e o eterno marulho abrir um eco, que estrugia metalicamente em cada palheta, e acordava no teclado das ondas estava o mais desconforme coro de rancor. Sobre uma crista de rocha estava um corvo, um corvo marinho, velho e calculado, cujos olhos corriam o mar à busca de sustento, e cujos lentos meneios traíam na extrema prudência, a sagacidade cruel dos pássaros cobardes, a quem a luta repugna, e que se ingurgitam só de podridão. Tinha as patas fincadas no fraguedo, as asas lassas pendendo ao chão, como se estivessem decepadas, e avançara o pescoço como quem fareja, estralejando o bico à guisa da matrácula. Como era enorme, o vulto dele, naquela postura de caça, tinha um selo diabólico e maldito. Era ainda noute, já o corvo tinha lobrigado o cadáver do escravo à tona d’água, e estivera a espreitá-lo dali, do seu reduto, partilhado entre a voluptuosa sensação da carne podre, e o pavor d’avançar sobre uma presa suspeita, que ele não via bem se vivia ou estava morta.

E de cima da rocha o seu olhar espiava dum lado os outros corvos, e doutro o flutuar do corpo, cada vez mais dobrado, e que se dirá lutar contra o impulso das ondas, para fugir às voracidades da ave impassível e satânica. Do seu apoio elevado enfim o corvo veio descendo, em pulos mansos, aos contrafortes mais baixos do rochedo, em cuja babosa escarpa vinham partir-se os cachões da ressaca.

Aqui se detinha um pouco a olhar de lado a presa cobiçada, além se deixava escorregar pelas salsugens marinhas, recuando aos repousos, com um pavor cobarde, de cada vez que a vaga vinha marrar com o negro à penedia. Houve um momento em que o refluxo das águas, mais forte, desviou o cadáver do ilhéu, cerca duns metros, tomando-o nas curvas dum remoinho brusco que depois o arrojou furiosamente, para uma distância além de penedia. E isto açulou o apetite sinistro do pássaro, cujas asas se abriram de repente.

De manso, ao rés d’água, sem um grasnido que aos outros desse alarme do subia, em vôos de seta, e tocava ao de leve a carne do cadáver, fugindo, voltando, te lhe ferrar de raspão a primeira bicada. Sem receio de rivais, aquele funéreo festim haveria parecido à ave delicioso. Mas era evidente que o ciúme de partilhar o banquete o desesperara, e desta vez o corvo tinha pressa em chegar aos bocados saborosos.

... Aí começa uma luta entre o corvo que pula sobre as espáduas do escravo, a ver se o volta, pra lhe sorver os olhos, como regalo primeiro da orgia perpetrada, e o cadáver que se defende à injúria, ocultando cada vez mais a cabeça sob a água, e deixando os braços oscilar, como duas inúteis e inertes barbatanas. Por muito tempo esta manobra prossegue, e à medida que avança, a impaciência da ave vai num crescendo de cólera inarrável. Ela abre as asas, ergue-se um instante no ar, para cair depois a todo peso, sobre um ombro do náufrago, a provocar oscilação que lhe desloque o corpo daquela postura passiva de defesa. Ela lhe rasga as carnes com as cortantes lâminas do bico, que se crava mais fundo, e mais, cada vez mais, na proporção da certeza que tem na impunidade. Mas tudo é inútil. O negro lá continua de bruços sobre as ondas, hirtas as pernas, o cavername do tronco abroqueado em glaciais musculaturas, os ombros sempre unidos, a cabeça debaixo do peito, como um vivo fizera, quando o chicote do amo lhe arava as carnes, delas fazendo suar martírio e sangue. De roda, tudo agora se alarga sob a coral de luz que a manhã canta.

As nuvens foram-se: o sol rebenta afinal à boca do grande deserto d’água, e pacifica-lhe as fúrias coas refulgências geniais da sua claridade. E nada é mais doce do que esse murmúrio sem fim das grandes águas, horrísono ainda há pouco, agora lírico e profundo, com o poean entoado pelos efebos, na terra helena, depois duma batalha.

Só o corvo prossegue na sua tarefa exaustiva, e, imagem do ódio, ei-lo armando em força a cobardia, requintando a vingança, tripudiando sobre a impunidade – como esses vencidos que se desforram da humilhação sofrida, indo aos cemitérios esbofetear os cadáveres dos vencedores. (O País das Uvas, Lisboa: Clássica, 1946, pp. 167-71).